quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Elevar a chama

   Nas aulas, é frequente pedirem-nos para endireitarmos a postura, para não estarmos nem inclinados para trás nem para a frente. Este erro acontece porque a ideia que temos de nós próprios está muitas vezes errada, e a prova disso é quando o mestre nos endireita e tudo no nosso corpo grita que antes é que estávamos bem, e que agora sim, estamos completamente tortos. Mas em vez de forçarmos os músculos das costas e do pescoço para nos esticarmos para cima, talvez o melhor seja adoptarmos uma estratégia diferente.


   Uma vela não está direita porque se contrai. Toda ela flui e ondula e aponta para cima, elevada pela leveza do seu próprio ser. E porque haveríamos de ser diferentes? Mais do que procurar uma postura recta, o melhor será procurar uma atitude recta. Se fizermos isso, podem crer que também nos elevaremos tão naturalmente como a chama de uma vela.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O mestre agricultor

   Inicialmente, o agricultor cuida das sementes de forma semelhante. Afinal, elas ainda se estão a desenvolver. É preciso descobrir aquilo em que se querem tornar. Mas depois, quando os rebentos já estão maiores e a precisar de mais espaço, é preciso transplantá-los e mudar de estratégia ou não vão crescer bem.

   Todas as pessoas são diferentes, precisam de coisas diferentes; e é aqui que a experiência do mestre é fundamental.
   Um miúdo irrequieto talvez precise de treinar a paciência e a ligação com o próximo enquanto uma senhora de meia idade talvez beneficie mais de alongamentos simples e de alguma força nas pernas.

   Cabe ao mestre ser o agricultor que ajuda os seus rebentos a crescer em direcção à luz, metendo estacas, fazendo podas, dando os nutrientes quando e na dose que cada um precisa, para que um dia também eles se transformem em agricultores e tenham rebentos ao seu cuidado.

   Partir os alunos é fácil. Fazê-los crescer é mais difícil.


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Preguiça

Sloth - Nikola Kucharska
   Mestre Murakami costumava dizer que a Preguiça era o pior de todos os "defeitos". O dicionário define-a como "propensão para não trabalhar" ou "demora ou lentidão em agir", mas o que não diz é que ela é dos vícios mais matreiros, e pode manifestar-se das formas mais incríveis:
   Se o dever exige que façamos algo que não queremos de maneira nenhuma fazer, ela adoece-nos o corpo para termos uma desculpa válida para não o fazer. Ou lembra-nos que temos a casa suja e a precisar urgentemente de uma limpeza. Ou que afinal existe um primo em segundo grau que não vemos há vários anos e que decidimos que temos mesmo que visitar agora ou nunca mais o faremos.
   A Preguiça é a inacção, o atrito, a força que nos pesa o espírito, e tem que ser combatida todos os dias, em todas as acções, desde o lavar a loiça ao decidir sobre o nosso próprio futuro. Deixá-la tomar conta é meio caminho andado para começarmos a passar os dias fechados em casa, longe de tudo e todos, completamente perdidos de nós próprios.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Musubi (União)

   Os japoneses têm uma palavra que surge muitas vezes associada a união, ligação ou conexão. Essa palavra é musubi (結び) e representa algo essencial no karate.

   Quando vemos um bando a voar sincronizadamente, não vemos nenhum pássaro a parar subitamente e a fechar as asas só porque acha que se enganou, ou a voar sozinho à frente do bando ou já teria sido rapinado há muito tempo. Todos eles estão unidos sob os mesmos princípios e todos mantêm a sua individualidade própria. E é isto que tem que acontecer nos treinos.

   Mais do que a técnica individual, o que realmente conta é a proximidade e a união do grupo como um todo. Sem isso seria impossível alcançar-se algo tão belo como isto:


Bando de estorninhos

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Água

   Por vezes desistimos dos nossos sonhos quando encontramos um obstáculo. Vemo-lo como prova de que nos enganámos no caminho e voltamos para trás. Ora, a água não volta para trás nem muda de direcção quando encontra uma pedra no meio do rio. Ela envolve-a e contorna-a e segue sempre o seu caminho. Se for muito forte pode até passar-lhe por cima, mas nunca a ignora.
   Ignorar um obstáculo é negar o desafio que a vida nos lançou; é fechar os olhos a uma lição importante que devemos aprender. Podemos ignorar o obstáculo mas isso provavelmente fará com que o encontremos novamente a jusante.